No fim de fevereiro começou a ficar claro que a situação do vírus estava fora de controle e era uma questão de tempo até que as coisas ficassem difíceis no Brasil inteiro. Eu estava acompanhando de perto as notícias dos jornais europeus e americanos e logo antes de Florianópolis ter sido "fechada" eu e minha mãe fomos no super mercado comprar mantimentos para cerca de 2 meses, assim comos os remédios de uso contínuo pra ela e meu pai. Não demorou para que as coisas começassem a faltar no super mercado, principalmente álcool gel. Pra nós nunca falou nada das coisas essenciais, mas deu pra perceber que a cadeia de suprimentos estava com dificuldades de manter o abastecimento, por motivos óbvios.
Ficamos socialmente isolados, como a maioria no país e mundo, seguindo as notícias na televisão e na internet. Não demorou a aparecerem teorias da conspiração nos grupos de whatsapp e ao povo ir na onda dos políticos e politizarem a pandemia, ignorarem a ciência, mesmo sem querer, declararem sua ignorância e/ou incapacidade de pensamento crítico. Eu só saía de casa pra levar o lixo no andar térreo no prédio onde meus pais moram. Somos privilegiados em vários sentidos: eu estava trabalhando à distância, então não faltava dinheiro pra mim, meus pais moram num apartamento grande, com um terraço de bom tamanho, então não nos sentíamos enclausurados, como muitas pessoas que moram em lugar pequeno sem acesso ao ar livre.
O meu retorno a Boston estava marcado pro começo de abril, mas eu sabia que devia estar preparada para mudanças de planos. Durante o período em que fiquei com meus pais eu ajeitei tudo pra que eles pudessem e soubessem usar diferentes aplicativos para que não precisassem sair de casa, organizava a lista de compras para entrega em casa, idem com farmácia e tantas coisas coisas que normalmente eles faziam em pessoa. Tudo o que podia foi substituído por aplicativos. Fazíamos reuniões virtuais com as minhas irmãs, uma na Espanha e a outra em Floripa mesmo. Era o começo da adaptação ao novo normal.
Eu estava acompanhando pelo site da Latam a situação dos vôos, e demorou um bom tempo para que eles deixassem de cobrar taxa de remarcação, mesmo com a pandemia a toda. Quando finalmente anunciaram que seria possível trocar a data do vôo (uma única vez) sem pagar taxa de remarcação, haviam notícias constantes de cancelamentos de vôo. Eu voei muitos anos com a Latam quando morei em Londres, e continuei a voar com eles morando em Boston porque são a única empresa que voa direto Guarulhos -> Boston Logan, mesmo sabendo por experiência própria que eles não são das melhoras empresas aéreas de se lidar. A medida que a data do meu vôo se aproximava eu tentava entrar em contato com a Latam, que compreensivelmente estavam dando prioridade para embarques próximos no atendimento das linhas telefônicas. Quando finalmente consegui falar com um atendente, perguntei com quanto tempo de antecedência saberia se o vôo a Boston seria cancelado, pois a última coisa que eu queria fazer era sair de Floripa e ao chegar em Guarulhos descobrir que o vôo seria cancelado. A resposta foi que não tinha como saber com certeza antes de chegar em Guarulhos. Esta resposta obviamente não foi boa o suficiente pra mim. Os dias foram passando e já era quase fim de abril quando percebi que o risco da fronteira entre Brasil e EUA fechar era grande. Comecei a pesquisar que outras empresas aéreas estavam voando assiduamente para os EUA. Não achava nenhuma opção que não precisasse de 3 conexões. Quanto mais conexão, maior a exposição e risco de pegar COVID-19. Minha mãe sugeriu que eu visse passagens para Orlando, que apesar de não ser rota direta com Boston é "no caminho", ao invés de outros destinos de escalas no meio dos EUA, o que adicionaria diversas horas de viagem. Vi que a Azul estava voando sempre 3 vezes na semana pra Orlando, e que em 2 dias teria um vôo disponível. Na pior das hipóteses eu alugaria um carro em Orlando e iria até Boston dirigindo. Aí vi que a Azul tem parceria com a Jetblue (mesma empresa eu acho), e voa direto Orlando -> Boston. Fechou! Comprei a passagem pra dentro de 2 dias: Floripa -> Campinas/SP -> Orlando -> Boston. Foi extremamente difícil deixar meus pais sozinhos. Eu estava os ajudando e fazendo companhia pra eles. Eu adoro estar com meus pais, conversar com eles, ver programas de TV, tocar piano, relembrar histórias, e devolver um pouco tudo o que fizeram por mim quando eu era criança, então estava me sentindo culpada e triste. Por outro lado o André estava sozinho com o Enee em Boston. E se ele precisasse de algo? Mas o que me fez ir foi que pensei o que aconteceria se eu ficasse doente. O André poderia cuidar de mim, mas meus pais não, pois são do grupo de risco. Foi com o coração pesado que me despedi dos meus pais no aeroporto de Floripa no fim de abril, de máscara e rapidamente, não exatamente a melhor forma de se despedir da família.
Aeroporto de Floripa fim de abril 2020 - vazio
O aeroporto novo de Floripa (que por sinal é lindo!) estava completamente vazio. No avião estavam todos de máscara e fiquei surpresa de ver que o vôo até campinas estava cheio. Dei sorte que não veio ninguém no assento do meio. Eu fui na janela até Campinas e havia uma pessoa no corredor. Sentei bem na frente no avião. Estava munida de 7 máscaras, vários pares de luvas descartáveis, lenços humedecidos e bastante álcool gel na bagagem de mão. Nas malas também bastante álcool gel, máscaras de pano e diversos rolos de papel higiênico, pois o André falou que em Boston era impossível achar estes items. Ao chegar no meu assento coloquei luvas, peguei lenço humedecido, taquei álcool gel e desinfetei tudo no meu assento, cinto, mesa, janela, enfim, tudo o que pudesse encostar durante o vôo. Não aceitei comer nem beber nada que me foi oferecido.
O aeroporto de Campinas tinha várias seções fechadas e somente uma sessão bem pequena aberta, onde haviam algumas lojas e restaurantes, todos varios. Fiquei 5 horas esperando o vôo de conexão, o que não foi nada divertido. Comi o que eu havia levado comigo e só comprei água mineral. O vôo até Orlando saiu pelas 11 da noite e foi dos melhores vôos da minha vida. Fui de classe executiva (paguei a mais pra ter mais segurança) e tinha bastante distância entre eu e qualquer outra pessoa no avião. Como a poltrona deita 180 graus dormi a noite inteira; nem jantei. No fim do vôo assisti um filme e logo chegamos em Orlando. A viagem me pareceu rápida, foi sem turbulência e super confortável.
O aeroporto de Orlando estava a maior tristeza. Estive lá diversas vezes na minha vida e era sempre super cheio. Diversas lojas temáticas dos parques de Orlando, milhares de turistas chegando e saindo, o hub de conexão dos terminais era sempre super cheio, onde tem aquele hotel com sacadas viradas pra dentro do aeroporto, com folhagens verdes decorando-as. Desta vez estava tudo fechado. Nenhuma loja aberta, aeroporto completamente deserto. Salvo alguns poucos lugares de comida e pouquissimas pessoas. No meu vôo haviam várias pessoas que aproveitaram os preços baixos das passagens pra tentar a sorte em visitar a Disney, mas os parques estavam todos fechados.
Tinha 6 horas até minha conexão com Boston, então fiz check-in no hotel do aeroporto. Sempre tive curiosidade de ver como era aquele hotel, então consegui matar essa curiosidade pelo menos. O check-in foi feito de forma eletrônica, longe do balcão. Fui direto pro quarto, que era escuro e ainda era possível sentir o cheiro de um pouco de tabaco da época onde ainda era possível fumar em lugares fechados. É um hotel mais antigo, pois em 1990 quando fui com minha família para Orlando pela primeira vez, este hotel já existia. Larguei as coisas no quarto e saí pra comprar algo pra comer no McDonalds, que trouxe pra comer no quarto.
Almoço no hotel do aeroporto de Orlando - Abril 2020
Depois fui sentar na beira da piscina do hotel, de onde dá pra ver as pistas de decolagem e pouso. Só vi 3 pessoas durante minha curta estadia: a pessoa do check-in, uma camareira e uma outra mulher que chegou na piscina quando eu tava saindo.
Aí tomei um banho e fiquei descansando até a hora do meu vôo pra Boston, que estava bastante vazio e foi bem tranquilo também.
Voo da Jetblue de Orlando até Boston - Abril 2020
O André estava me esperando no aeroporto em Boston e logo cheguei em casa. Como eu havia dormido bastante no vôo não estava tão cansada, e depois de outro banho completo (lavando o cabelo e tudo) pude ainda dar oi e brincar com o Enee, que fazia 4 meses que não via.
Fiquei em casa por 15 dias, grata por ter dado tudo certo e eu ter chegado bem e sem ter me contaminado. Foi bom saber que tomei a decisão certa, pois no dia seguinte da minha chegada a fronteira dos EUA com o Brasil foi fechada, e o meu vôo original da Latam pra Boston foi cancelado. Pedi o reembolso da viagem de retorno fim de maio. Estou escrevendo este post em dezembro, e até agora nada do meu dinheiro. Desde então, nossa vida mudou como a do resto do mundo, mas eu André, meus pais e resto da família continuamos bem e isso que importa.
Algumas cenas da viagem de volta: https://youtu.be/MNiaPhS2puA